O Regime de substituição tributária do PIS e Cofins nas vendas para Zona Franca
O Poder Judiciário, mais especificamente o Supremo Tribunal Federal (STF), tem causado instabilidades no equilíbrio entre os Poderes, buscado pelo art. 2º da Constituição Federal, segundo o qual os Poderes Legislativo, o Executivo e o Judiciário são independentes e harmônicos entre si.
A função típica do Poder Judiciário é o exercício da jurisdição, o que significa aplicar a lei, produzida pelo Poder Legislativo, a um caso concreto. Porém, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.254/SP, proposta pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o STF acabou extrapolando os limites de sua competência, fixando alíquotas de PIS e Cofins para as vendas de veículos novos e autopeças realizadas na Zona Franca de Manaus (ZFM).
De início, é importante destacar que, de acordo com o art. 40, combinado com o art. 92 e 92-A, todos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), introduzidos pelas Emendas Constitucionais 42/2003 e 83/2004, é mantida a ZFM com suas características de área livre de comércio, de exportação e importação e de incentivos fiscais até o ano de 2073.
Esses dispositivos constitucionais, interpretados juntamente com o art. 4º do Decreto-lei nº 288/1968, prescrevem que a venda de mercadorias de origem nacional para consumo ou industrialização nessa região do país deve ser considerada, para todos os efeitos fiscais, equivalente a uma exportação brasileira para o exterior.
Considerando que o art. 149, § 2º, I, da Constituição Federal, estabelece que “as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação”, as receitas de venda de mercadorias destinadas à ZFM devem receber o mesmo tratamento, estando igualmente imunes à incidência do PIS e Cofins.
Não obstante ser vedada a instituição das contribuições nas vendas para a ZFM, o Poder Legislativo, após diversas tentativas de tributar tais operações, editou a Lei 10.996/2004, cujo art. 2º reduziu para zero as alíquotas do PIS e Cofins incidentes sobre as receitas de vendas de mercadorias destinadas ao consumo ou à industrialização na ZFM, por pessoa jurídica estabelecida fora desta área.
Embora o efeito financeiro desta norma seja o mesmo da isenção ou imunidade das contribuições sociais, fato é que tais receitas não poderão ser oneradas pelas referidas contribuições até 2073.
Já as receitas auferidas pelas empresas revendedoras desses produtos em operações realizadas na ZFM não estão amparadas pela imunidade, estando sujeitas à tributação normal, ainda que em determinadas situações também se sujeitem a tratamentos diferenciados definidos pelo Poder Legislativo.
A questão está na tributação da receita de venda de determinados produtos que, em regra, está sujeita a alíquotas majoradas e concentradas de PIS e Cofins quando auferida por produtor, fabricante ou importador de produtos cosméticos, medicamentos, veículos, autopeças, pneus e câmaras de ar, e alíquota zero quando auferida por revendedores nas etapas seguintes da cadeia comercial.
Em que pese esse regime de tributação diferenciada, também conhecido como monofásico, estabelecer a aplicação de alíquota concentrada no início da cadeia comercial, a receita de vendas dos referidos produtos para destinatários localizados na ZFM deve ser amparada pela imunidade à incidência do PIS e Cofins.
Diante disso, não fosse por uma medida adotada pelo legislador, não haveria tributação pelas contribuições em qualquer etapa da cadeia comercial desses produtos, pois a receita auferida pelo produtor, fabricante ou importador, estaria amparada pela imunidade e a receita auferida pelo revendedor localizado na ZFM estaria sujeita à alíquota zero, nos termos da Lei nº 10.485/2002.
A solução legislativa para esse impasse foi excluir da alíquota zero das contribuições a receita decorrente da revenda dos referidos produtos sujeitos à tributação concentrada, quando auferida por pessoa jurídica estabelecida na ZFM, diferentemente do que ocorre nas demais regiões do país.
Especificamente com relação aos produtos tratados na ADI 4.254, o legislador ordinário estabeleceu alíquota total de 11,6% sobre a receita auferida pelas concessionárias localizadas na ZFM na revenda de veículos novos, e 13,1% na revenda de autopeças definidas nos Anexos I e II da Lei 10.485/2002, enquanto a receita auferida por revendedores de outros produtos naquela região é tributada pela alíquota de 9,25%.
Além de fixar a alíquota concentrada na segunda etapa da cadeia comercial desses produtos quando revendidos por contribuintes estabelecidos na ZFM, o legislador atribuiu ao fornecedor fora daquela região a obrigação de recolher, na condição de substituto tributário, o PIS e Cofins incidentes sobre a receita a ser auferida pelos adquirentes de seus produtos ali estabelecidos (art. 65, § 2º, da Lei 11.196/2005), considerando ainda como base de cálculo o preço praticado pelo fabricante ou importador localizado fora daquela região.
Utilizando-se desse instituto, habilmente o legislador ordinário acabou por efetivamente tributar a operação realizada inclusive pelos referidos fabricantes e importadores, em completa afronta à Constituição Federal.
Não se conformando com essa exigência, a CNC propôs a ADI 4.254/SP questionando a constitucionalidade dessa tributação e do próprio regime de substituição tributária, claramente por subverter a imunidade do PIS e Cofins assegurada no fornecimento de mercadorias destinadas à ZFM e descumprir o objetivo constitucional de redução das desigualdades regionais e sociais e os princípios da isonomia e uniformidade geográfica.
Ao julgar a ação, a ministra Relatora Carmen Lúcia esclareceu, com muita propriedade, que, diferentemente do que alegam alguns, a Lei 10.485/2002 não prescreve a incidência do PIS e Cofins em uma única etapa da cadeia comercial, mas em toda ela, variando apenas a alíquota, que é concentrada na primeira operação.
De acordo com o voto da ministra relatora, a imunidade tributária aplicável à receita de venda dos produtos relacionados na Lei 10.485/2002 a destinatários estabelecidos na ZFM não é comprometida pela atribuição de responsabilidade ao fornecedor. Citando o ministro Joaquim Barbosa, afirma que “a imunidade tributária não afeta, tão-somente por si, a relação de responsabilidade tributária ou de substituição e não exonera o responsável tributário ou o substituto”.
Porém, embora tenha declarado constitucional a adoção do regime de substituição tributária, a ministra Cármen Lúcia assim não entendeu com relação ao percentual concentrado das alíquotas, alegando que sua aplicação sobre as operações realizadas pelas concessionárias de veículos e revendedores de autopeças afrontaria o princípio da isonomia tributária.
A declaração de inconstitucionalidade das alíquotas impostas pelo legislador ordinário impediria a cobrança do PIS e Cofins por substituição tributária pelos fabricantes e importadores de veículos e autopeças fornecidos a revendedores estabelecidos na ZFM.
Para evitar que essa decisão resultasse em lacuna legislativa, e sob o argumento de realizar a “calibragem de alíquotas do PIS e Cofins” para cumprimento do princípio da isonomia tributária, o ministro Luiz Fux decidiu aplicável a alíquota geral das contribuições prevista nas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003, qual seja, 9,25%, para cálculo e recolhimento pelo substituto tributário.
Tal medida configura nítida atividade legislativa, não prevista no art. 102 da Constituição Federal, que atribui ao STF a função jurisdicional. Ao invés de limitar-se a declarar a inconstitucionalidade das alíquotas, a Corte fixou alíquotas de PIS e Cofins que entendeu adequadas, exercendo função típica do Poder Legislativo, o que acaba prejudicando o necessário equilíbrio entre os Poderes, independentes e harmônicos, nos termos do art. 2º da Carta Magna.
É certo que a declaração de inconstitucionalidade das alíquotas concentradas previstas para cálculo do PIS e Cofins devidos por substituição tributária impediria o recolhimento dessas contribuições.
Não obstante, caberia ao STF aguardar que o Congresso Nacional fixasse outros percentuais ao invés de exercer a função legislativa. Segundo Hans Kelsen, “se a concepção ético-política do juiz toma o lugar da concepção ético-política do legislador, este abdica em favor daquele” (Teoria Pura do Direito, 6ª ed. p. 276).
Também Miguel Reale se posicionou contrariamente à atividade legislativa pelo Poder Judiciário, afirmando que, “mesmo quando autorizado a decidir por equidade, aplicando a norma que estabeleceria se fôsse julgador (Código de Processo Civil, art. 114) não pode o juiz se conduzir como um ‘emancipado’ das idéias e valôres dominantes, sôbre que se funda a ordem jurídica vigente, pois se presume que o legislador só emane regras em consonância com as exigências da comunidade” (Filosofia do Direito, 4ª ed., p. 503).
Assim, embora o STF tenha pretendido legitimamente garantir a preservação do princípio da isonomia tributária, não poderia ter fixado alíquota de PIS e Cofins em substituição àquela declarada inconstitucional no julgamento da ADI, extrapolando sua função típica definida no texto constitucional, qual seja, a jurisdicional, que não se confunde com a legislativa.
Por fim, apesar de a decisão do STF ter por objeto a declaração de inconstitucionalidade das alíquotas aplicáveis às receitas auferidas por concessionárias e revendedores de veículos novos e autopeças localizados na ZFM, o fato é que seu fundamento permite o mesmo questionamento em relação aos demais produtos submetidos ao regime monofásico das contribuições, tais como, medicamentos, perfumaria, cosméticos e pneus.